Os leitores da Análise Fílmica já devem estar acostumados a lerem, a cada semana, um tipo de texto diferente. Gerando sempre abordagens e reflexões distintas para cada obra. O cinema é apenas um pano de fundo para debatermos outros conceitos. Já tratamos aqui de psicologia com o filme Onde Vivem Os Monstros; da Ética do Cuidado com Intocáveis; de história, sociedade e política latino-americana com O Segredo dos Seus Olhos; de jornalismo, manipulação e ideologias com Cidadão Kane e até da própria essência do cinema com Intrigas. E dessa vez o filme escolhido é Trabalhar Cansa. A obra servirá para entendermos um pouco das características e diferenças do Cinema Clássico e do Cinema Moderno.
As grandes produções de Hollywood são o que podemos chamar de cinema clássico ou de gênero. Suas características proporcionam distinções bem definidas entre o drama, a comédia, o épico, o western, o terror, a ação, ficção científica, etc. Já o cinema moderno ou de escolas surgiu na Europa, no período entre guerras com o Expressionismo alemão, o cinema russo, o Futurismo italiano, o Cubismo e o Surrealismo na França. E se perpetuou a partir da década de 1950 com os filmes noir e a nouvelle vague franceses, o neorrealismo italiano, o cinema novo brasileiro, entre outros.
O cinema clássico é conservador e tem um tema central bem definido. Ao longo de sua narrativa trabalha um estado emocional que se repete à exaustão e facilita ao espectador a escolha do que assistir, mantendo assim, sempre a mesma estrutura narrativa. As obras clássicas geralmente possuem um roteiro padrão e industrial, com doses bem estabelecidas em situações de tensão e relaxamento. Este tipo de cinema busca envolver o espectador fazendo-o acreditar que a estória contada é “real”.
Os fatos apresentados no filme podem não ser essencialmente verdadeiros, entretanto, devem ser fiéis e “realistas” com o tempo estrutural do filme, ou seja, as diegeses fílmicas de cada obra. A linha narrativa ficcional deve seguir uma lógica, uma linearidade. A trama precisa transmitir sentidos, possuir coerência e ser contada em ordem cronológica. A curvas dramáticas são caracterizadas por um começo, um meio e um fim bem definidos. É estabelecida uma divisão em etapas que permite uma visão clara dos acontecimentos narrativos.
Já o cinema moderno não tem nada de conservador. Pelo contrário, possui diferentes elementos estéticos em cada uma de suas vertentes. Defende princípios filosóficos baseados em características ímpares e questionamentos políticos. Por exemplo, o cinema russo, sempre a serviço da revolução. Suas obras refletem seu espírito contestador. É um cinema questionador que busca sempre novas formas de construções narrativas, condizentes com suas indagações estéticas.
No cinema moderno não existe uma obrigatoriedade com relação à legibilidade da narrativa ou da progressão dramática. A trama não precisa transmitir sentidos e pode ser desenvolvida de hipóteses, de sugestões e com um desenrolar cênico aleatório. Uma característica deste tipo de obra é o texto, a imagem e o som tortuosos, dialéticos. Eles não precisam seguir uma linearidade, podem estar em conflito ou servindo de contraponto.
O filme Trabalhar Cansa possui em sua narrativa características não comuns ao cinema brasileiro. Apesar de deixar indagações vagas no ar (como as pitadas de terror - diga-se de passagem, inexplicáveis - presentes na obra), seu final ser um pouco inconclusivo e tentar parecer algo além do que realmente é, Trabalhar Cansa é um filme clássico. Sua estória segue uma linha linear com começo, meio e fim bem definidos. No princípio, os personagens são apresentados, os protagonistas e os antagonistas são bem destacados, surge o problema principal e o conflito.
ATENÇÃO: A partir daqui, spoilers.
Talvez o meio do filme é que destoe um pouco pois a obra é “linear demais”. Nada acontece. O mercado de Helena (Helena Albergaria) não dá grandes frutos, entretanto também não vai à falência; Otávio (Marat Descartes) não consegue um novo emprego, etc. Tanto que, ao final não temos esclarecimento ou conclusão alguma: os elementos sobrenaturais da narrativa não são explicados (talvez nem façam muito sentido em relação ao tipo de estória que está sendo retratada), não vemos um alento em relação à Otávio ou a situação de Helena. Ele é quase um filme moderno, mas ainda assim, predominam as características do cinema clássico.
Cada gênero fílmico, em tese, tem suas características muito bem definidas. A trama central de Trabalhar Cansa pode ser definida como um Drama, entretanto, as pitadas de horror presentes na obra também atribuem a ela características do gênero de terror. Sendo assim, podemos considerar o filme como um drama/terror. Tal classificação se justifica pelos acontecimentos misteriosos que ocorrem no mercado e ao redor de Helena: Seu nariz sangrando na festa de final de ano; o ovo de galinha que tem sangue no interior de sua gema; o esqueleto de um possível lobisomem encontrado na parede do mercado; a água podre que emerge do chão, e que depois, acaba se descobrindo que era uma sujeira densa composta por muitos vermes que entupiam o encanamento do mercado; o cachorro que atormenta Helena todos os dias.
Essa certa confusão, esse tipo de falta de identidade, que parece não se decidir se segue os padrões do cinema clássico ou se vai em direção aos braços do cinema moderno, o tornam num filme razoável. Talvez, se Trabalhar Cansa ousasse mais, teríamos questionamentos mais profundos, uma obra mais complexa e completa. Ou ainda, se não tentasse inventar tanto, focar só no drama ou só no terror seria uma solução mais adequada. O filme, que não sabe o que quer ser/representar, acaba não sendo uma coisa nem outra. Trabalhar Cansa paira sobre uma espécie de limbo cinematográfico.
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
País de Origem: Brasil
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